São Paulo S.A (Luis Sergio Person, 1965) é um dos
primeiros filmes que levantam vários problemas referentes a classe média na
cidade de São Paulo. O filme problematiza as consequências que o
desenvolvimento da indústria automobilística causa. Percebemos que os
personagens escolhidos não foram homens ricos, mas sim indivíduos de classe
média, montando pequenas fábricas que vivem na dependência da grande indústria.
Os donos dessas pequenas fábricas enriquecem a custa da inflação e de manobras
desonestas no desenrolar do filme (BERNADET p. 137, 2007).
Vamos nos ater a analisar como as mulheres são
retratadas nesse filme. O italiano Arturo (Otelo Zelloni), é casado, tem
filhos, aparentemente é um bom pai de família, é uma figura simpática, trata
bem sua esposa, mas possui belas amantes, modelos, mais novas que ele,
circulando com elas nos espaços públicos enquanto sua esposa fica reclusa em
sua casa, desempenhando seu papel de mãe. Nessa questão, a rua pode representar
um local onde mulheres casadas, mulheres “sérias”, não frequentam, tendo em
vista que praticamente todas as vezes que a esposa de Arturo aparece no filme,
ela está no lar, sempre em companhia dos filhos, e quando seu marido está na
rua, nos bares, restaurantes, ele está acompanhado das amantes.
Para esse aspecto, a polaridade casa versus rua nos
chama atenção. Como se o mundo interno fosse feminino e o mundo externo
masculino, podemos considerar a casa como uma prisão para as mulheres, ou um
lugar seguro, onde a mulher está segura, remete a proteção do ninho pertencente
às mulheres. Essa questão remete também à concepção de rua como local da
interação social e do controle e também ao seu entendimento como o espaço dos
desejos e ansiedades. A dicotomia virgem-prostituta é presente também, pois a
mulher “virgem” se encontrava em casa e as prostitutas, que estavam sempre na
rua, nos bares, bailes, circulando nos espaços públicos.
Em São Paulo S/A o personagem principal é Carlos
(Valmor Chagas). Ele trabalha no escritório do Arturo. Após cursar desenho
industrial, entrou para a seção de controle da Volkswagem. Carlos tem várias
amantes, mas não estabelece uma relação sólida com nenhuma delas, não consegue
dominá-las e nem render-se a elas; namora Luciana (Eva Wilma), moça de família
conservadora, classe média. Carlos a conhece no curso de inglês e no desenrolar
da história, eles se casam. No filme, percebe-se que Carlos quis casar não pelo
“amor”, muito menos pela noiva – apesar de Luciana ser uma mulher nos moldes da
sociedade patriarcal, Carlos foi levado a casar devido à solidão que sentia.
Sobre isso, BERNADET (2007) diz:
Casar ele quis, não pela noiva, nem pelo casamento.
Levado pela solidão freqüentou Luciana, moça casadoura, e acabou preso na
engrenagem familiar. Mas também não resistiu. A evolução é normal e não requer
escolha especial por parte do interessado: tendo sua vida profissional mais ou
menos fixada, podendo assegurar o aluguel de um apartamento inicialmente
pequeno, o paulista classe média, de 25-30 anos, casa: assim é o ritual. (Bernadet,
p. 135, 2007).
Através da análise de Jean Claude Bernadet,
percebe-se que não apenas a mulher se sentia pressionada em constituir uma
família, o homem, quando chegava a certa idade, sentia-se pressionado a ter um
casamento, filhos, estabelecer uma relação padrão de relacionamento.
Luciana, em vários momentos do filme, demonstra a
admiração por Arturo, o vê como modelo em que Carlos deveria seguir, pois
Arturo é bem sucedido, pai atencioso, aparentemente ótimo marido, e Luciana
projeta seu marido na mesma posição de seu chefe, Arturo. Mal sabe ela da vida
que Arturo leva, de suas amantes e da maneira com que enriquece.
Fazendo uma análise da personagem Luciana, da forma
com que ela age perante as grosserias que seu marido faz, a maneira na qual ele
a trata, com desprezo, descaso, como se ela fosse um peso, ela nunca reage, não
questiona as atitudes dele, não cobra uma postura diferente. Na maioria das
vezes, se porta como submissa como
submissa, principalmente quando Carlos diz que vai embora, que cansou da vida
que estava levando, cansou dela, de seu filho, Luciana tenta o impedir de sair,
diz para ele “parar de besteira”, como se ela precisasse da presença dele ali
mais do que tudo, demonstrando um amor incondicional, independente de como ele
a trata, ela o quer por perto. A figura de vítima e impotente é atribuída a
ela, impotência porque nem ela sendo uma esposa modelo, não conseguiu “segurar”
seu marido no casamento, no lar.
Rosália Duarte (2009) chama-nos a atenção para o
seguinte aspecto no que diz respeito à mulher e o cinema:
A mulher é, quase sempre, coadjuvante. De um modo
geral, o protagonismo feminino em narrativas fílmicas é fortemente marcado por
definições misóginas do papel que cabe às mulheres na sociedade; casar-se,
servir ao marido, cuidar dos filhos, amar incondicionalmente. Mulheres livres,
fortes e independentes são freqüentemente apresentadas como masculinizadas,
assexuadas, insensíveis e traiçoeiras. São comuns as situações em que elas
atuam como o elemento desestruturante, como a força de ruptura na narrativa. (DUARTE,
2009 p.46-47)
Outras mulheres do filme são as
amantes de Carlos, Hilda (Ana Esmeralda) e Ana (Darlene Glória). Ana passa por
várias camas, tem como objetivo subir na vida, colocando seu charme a
disposição da publicidade automobilística. É sempre retratada como a mulher
fatal, sexy e ao mesmo tempo, Ana transmite a imagem de mulher livre, pois nos
tempos livres ela procura se divertir, vai à praia com os amigos, não se
importa com o que Carlos pensa. Isso fica claro na cena em que ela sobe em uma
lancha de uns amigos e deixa Carlos sozinho na praia.
Hilda, de condições financeiras mais
elevadas, demonstra que nada satisfaz sua angústia, sua vontade de ser amada
intensamente, de verdade. Em uma de suas falas Hilda diz: “Carlos, você não é e
nunca será meu amante”. Como se Carlos não fosse digno, não conseguisse saciar
o vazio em que Hilda se encontrava no que resultou em um suicídio.
Com isso, percebemos que o filme de
Luis Sergio Person, além de retratar questões emblemáticas que o
desenvolvimento industrial - onde o capitalismo passou a reger todas as
relações, e tudo passou a girar em torno dele, o que esses aspectos causaram na
sociedade, é um prato cheio para analisarmos como as mulheres eram vistas e
retratadas no cinema brasileiro, por um olhar masculino – tendo em vista que o
diretor do filme é um homem e que todos os cineastas da época eram homens - a
busca que essas tinham por uma identidade num período em que não tinham voz, e
que estavam limitadas ao âmbito familiar; sendo vistas desempenhando apenas uma
função: de donas-de-casa.
O que podemos ver em São Paulo/SA é
um cinema que expõe a situação que as mulheres se encontravam no Brasil,
fragmentos e faces da realidade dessas. As angústias das personagens – e dos
personagens, pois a industrialização causa mudanças nas estruturas sociais,
econômicas e familiares dos indivíduos, os dramas e nesse contexto, as mulheres
buscavam suas identidades, tentando romper com o patriarcado.